Uma outra visão sobre a vida e a morte
Nossa visão sobre a vida e a morte está profundamente marcada pelo pensamento judaico-cristã, segundo o qual, vida e morte se opõem de maneira excludente. A morte não é imanente ao mundo, não é natural, mas a consequência de uma desobediência a Deus. O destino da alma é o Céu ou o Inferno (dicotomia atenuada com a criação do Purgatório). Sob essa ótica, nossa noção de tempo é linear, começando em um passado remoto e se dirigindo ao futuro. A cosmovisão asteca é diferente. Vida e morte não são excludentes, mas fazem parte de uma mesma dinâmica que se retroalimenta. A morte é entendida como fim de um ciclo e princípio de outro, não tem a carga moral do cristianismo atual e nem estava sujeita ao inferno punitivo ou ao céu paradisíaco. Para os astecas, o lugar de destino do morto não dependia de suas ações quando vivo, mas da maneira como ele morreu. De acordo com isso, havia três destinos para os mortos: Omeyacan, paraíso do sol, presidido como Huitzilopochtli, o deus da guerra e protetor dos astecas. Ali chegavam os guerreiros mortos em combate, os sacrificados e as mulheres que morriam ao dar à luz. Os mortos que viviam em Omeyocan, depois de quatro anos, voltavam ao mundo, na forma de aves de belas plumagens coloridas. Tlalocan, o país de Tlaloc, o deus da chuva, era um jardim de flores permanentes, lugar de abundância e repouso para onde iam as almas dos afogados, dos que morriam atingidos por um raio ou por enfermidades causadas pela água. Mictlán, a terra da maioria dos mortos que recebia aqueles que tiveram uma morte natural. Era um país de trevas e de frio, presidido pela deusa Mictecacihuatl, “senhora da morte”, esposa de Mictlanlecuhtli, senhor do reino dos mortos. Tinha nove níveis ou regiões que o morto deveria atravessar enfrentando obstáculos que expressavam os estágios de decomposição do corpo e os tormentos infligidos pelos monstros devoradores. Depois de quatro anos, quando toda a carne havia desaparecido e só restavam os ossos, a morte estava terminada e o morto, então, podia descansar na presença de Mictecacihuatl e Mictlantecuhtli, a senhora e o senhor dos mortos.
Vida e morte no mesmo espaço-tempo
Para os astecas, Mictlán tinha um duplo caráter: além de lugar dos mortos era, também, onde germinava a vegetação e fornecia o alimento que nutre os homens. Local que gera a vida e para onde se regressa.
A mesma ideia de vida e morte estava associada ao ventre feminino – considerado um submundo fecundo. O ventre que abriga a criança que está por nascer é, por analogia, Mictlán. A convergência de ideias se manifesta na língua: em náhuatl chama-se óztotl a cova onde se coloca o morto, e ótztic, a gravidez. O nascimento é vida mas pode também levar à morte da mãe. Mictlán além de terra dos mortos também era o lugar que deu origem à humanidade atual. Na mitologia asteca, o deus Xolotl, na forma de um cão-esqueleto com os pés virados para trás, trouxe de Mictlán as ossadas secas de uma antiga raça e elas foram fecundadas pelo sangue dos deuses do céu e do herói civilizador Quetzalcóatl. Surgiu assim o homem primordial, gerado dos ossos dos mortos e do sangue dos deuses. A festa dos mortos: no passado e hoje Nos 18 meses do calendário asteca, havia pelo menos seis festejos dedicados aos mortos. Dois meses eram consagrados aos mortos: em Tlaxochimaco, o nono mês do ano asteca correspondendo a julho quando se celebrava a pequena festa dos mortos com oferendas de flores; e Hueymiccailhuitl, o décimo mês, equivalente a agosto e setembro, quando ocorria a grande festa dos mortos. Os astecas (e outros povos da Mesoamérica) possuíam extensas e elaboradas cerimônias para os mortos com rituais diferenciados para adultos e crianças. Era comum a prática de conservar os crânios como troféus e mostrá-los durante os rituais que simbolizavam morte e renascimento. A evangelização e consequente proibição dessas festas acabaram fundido costumes e crenças antigas às festas cristãs. As festas astecas para os mortos foram reunidas no Dia de Finados (2 de novembro) mas, na prática, elas começam antes, no dia 31 de outubro. Diversos elementos das crenças antigas ainda subsistem em meio à liturgia da missa e às orações cristãs, o que torna o Dia de los Muertos (dia dos mortos) mexicano uma festa muito peculiar. Segundo a crença popular, nesses dias os mortos têm permissão divina para visitar parentes e amigos. No dia 1º de novembro vêm as almas das crianças, e no dia 2, as dos adultos. Para receber seus entes falecidos, as pessoas enfeitam suas casas com flores, velas e incensos, preparam suas comidas e bebidas preferidas, vestem roupas com esqueletos pintados ou se fantasiam de morte – uma maneira de deixar os mortos mais confortáveis no mundo dos vivos. São elementos típicos do Dia dos Mortos mexicano: Esqueletos: como fantasia ou bonecos em tamanho natural, eles estão por todo lado, nas casas e nas ruas, recepcionando os mortos que nesses dias perambulam pela cidade visitando seus parentes e amigos. Alguns esqueletos são vestidos ou levam objetos que os identificam: bengala, chapéu, bolsa, bola, bicicleta etc.
La Catrina: trata-se do esqueleto de uma dama da alta sociedade do início do século XX, trajada elegantemente e usando um belo chapéu. Seu nome vem do desenho La Calavera de la Catrina (“A caveira de Catrina”), do artista mexicano José Guadalupe Posada (1852-1913), que faz parte de uma série de caveiras humorísticas destinadas a lembrar que as diferenças sociais não significam nada diante da morte. O desenho popularizou-se e La Catrina foi incorporada à Festa de los Muertos como uma espécie de Dama da Morte, uma Mictecacihuatl contemporânea.
La Llorona (“A Chorona”): figura fantasmagórica do imaginário popular mexicano, o espírito de uma mulher que perambula pela noite chorando a morte de seus filhos. Sua origem remete à mitologia pré-hispânica da deusa Cihuacóatl que emergiu do lago Texcoco para chorar a morte de seus filhos (os astecas) prevendo seu fim próximo. Outra versão, diz se tratar do espírito de Malinche, a indígena que acompanhou Hernán Cortés e teve papel importante na conquista do México que, por ter traído seu povo, virou alma penada. Há diversas outras versões mas, seja qual for, a figura de La Llorona acabou se fundindo à de La Catrina. Altares e oferendas: na impossibilidade de se visitar o túmulo (pela distância ou porque ele já não existe), as famílias montam altares em suas próprias casas nos quais colocam fotos do(s) morto(s) e representações dos quatro elementos: água, frutos (terra), vela (fogo), incenso e papéis recortados (ar). Completam o altar com os objetos favoritos do falecido ou brinquedos se for uma criança, comidas, bebidas, sal, flores, cobertores ou poncho (para aquecer o morto) etc. Uma cruz, na parte superior do altar junto à imagem do defunto, feita de sal, cinza ou terra lembra a máxima cristã: “Lembra-te que és pó e ao pó voltarás”.
Portal dos mortos: um arco de flores que simboliza a entrada por onde os espíritos poderão passar para visitar os vivos. Pão de mortos: um pão doce polvilhado de açúcar. Apesar de ser um pão simples, não é consumido durante o ano pois é reservado exclusivamente para a festa do Dia dos Mortos.
Caveiras de açúcar: doces em forma de caveira com o nome do morto e que são dados às crianças. Flores: girassol, rosas e, especialmente, crisântemos amarelos são usados em profusão para decorar túmulos e altares. Elas simbolizam a beleza e a transitoriedade da vida. Patrimônio Cultural Imaterial Em 2003, o Dia de los Muertos foi declarado Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco que a considerou “uma das representações mais relevantes do patrimônio vivo do México e do mundo e como uma das expressões culturais mais antigas e de maior força entre os grupos indígenas do país”. A festividade mexicana é também comemorada nos Estados Unidos principalmente nos estados onde existe uma comunidade de imigrantes mexicanos, caso do Texas, Arizona e Califórnia. Contudo, já se observa com frequência cada vez maior, a penetração de elementos típicos do Halloween nos festejos do Dia de los Muertos. Daí existir a preocupação dos próprios mexicanos em preservar o Dia de los Muertos como parte do patrimônio cultural imaterial sobre outras celebrações similares.
Fonte - GENNEP, Arnold Van. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.
Nossa visão sobre a vida e a morte está profundamente marcada pelo pensamento judaico-cristã, segundo o qual, vida e morte se opõem de maneira excludente. A morte não é imanente ao mundo, não é natural, mas a consequência de uma desobediência a Deus. O destino da alma é o Céu ou o Inferno (dicotomia atenuada com a criação do Purgatório). Sob essa ótica, nossa noção de tempo é linear, começando em um passado remoto e se dirigindo ao futuro. A cosmovisão asteca é diferente. Vida e morte não são excludentes, mas fazem parte de uma mesma dinâmica que se retroalimenta. A morte é entendida como fim de um ciclo e princípio de outro, não tem a carga moral do cristianismo atual e nem estava sujeita ao inferno punitivo ou ao céu paradisíaco. Para os astecas, o lugar de destino do morto não dependia de suas ações quando vivo, mas da maneira como ele morreu. De acordo com isso, havia três destinos para os mortos: Omeyacan, paraíso do sol, presidido como Huitzilopochtli, o deus da guerra e protetor dos astecas. Ali chegavam os guerreiros mortos em combate, os sacrificados e as mulheres que morriam ao dar à luz. Os mortos que viviam em Omeyocan, depois de quatro anos, voltavam ao mundo, na forma de aves de belas plumagens coloridas. Tlalocan, o país de Tlaloc, o deus da chuva, era um jardim de flores permanentes, lugar de abundância e repouso para onde iam as almas dos afogados, dos que morriam atingidos por um raio ou por enfermidades causadas pela água. Mictlán, a terra da maioria dos mortos que recebia aqueles que tiveram uma morte natural. Era um país de trevas e de frio, presidido pela deusa Mictecacihuatl, “senhora da morte”, esposa de Mictlanlecuhtli, senhor do reino dos mortos. Tinha nove níveis ou regiões que o morto deveria atravessar enfrentando obstáculos que expressavam os estágios de decomposição do corpo e os tormentos infligidos pelos monstros devoradores. Depois de quatro anos, quando toda a carne havia desaparecido e só restavam os ossos, a morte estava terminada e o morto, então, podia descansar na presença de Mictecacihuatl e Mictlantecuhtli, a senhora e o senhor dos mortos.
Vida e morte no mesmo espaço-tempo
Para os astecas, Mictlán tinha um duplo caráter: além de lugar dos mortos era, também, onde germinava a vegetação e fornecia o alimento que nutre os homens. Local que gera a vida e para onde se regressa.
A mesma ideia de vida e morte estava associada ao ventre feminino – considerado um submundo fecundo. O ventre que abriga a criança que está por nascer é, por analogia, Mictlán. A convergência de ideias se manifesta na língua: em náhuatl chama-se óztotl a cova onde se coloca o morto, e ótztic, a gravidez. O nascimento é vida mas pode também levar à morte da mãe. Mictlán além de terra dos mortos também era o lugar que deu origem à humanidade atual. Na mitologia asteca, o deus Xolotl, na forma de um cão-esqueleto com os pés virados para trás, trouxe de Mictlán as ossadas secas de uma antiga raça e elas foram fecundadas pelo sangue dos deuses do céu e do herói civilizador Quetzalcóatl. Surgiu assim o homem primordial, gerado dos ossos dos mortos e do sangue dos deuses. A festa dos mortos: no passado e hoje Nos 18 meses do calendário asteca, havia pelo menos seis festejos dedicados aos mortos. Dois meses eram consagrados aos mortos: em Tlaxochimaco, o nono mês do ano asteca correspondendo a julho quando se celebrava a pequena festa dos mortos com oferendas de flores; e Hueymiccailhuitl, o décimo mês, equivalente a agosto e setembro, quando ocorria a grande festa dos mortos. Os astecas (e outros povos da Mesoamérica) possuíam extensas e elaboradas cerimônias para os mortos com rituais diferenciados para adultos e crianças. Era comum a prática de conservar os crânios como troféus e mostrá-los durante os rituais que simbolizavam morte e renascimento. A evangelização e consequente proibição dessas festas acabaram fundido costumes e crenças antigas às festas cristãs. As festas astecas para os mortos foram reunidas no Dia de Finados (2 de novembro) mas, na prática, elas começam antes, no dia 31 de outubro. Diversos elementos das crenças antigas ainda subsistem em meio à liturgia da missa e às orações cristãs, o que torna o Dia de los Muertos (dia dos mortos) mexicano uma festa muito peculiar. Segundo a crença popular, nesses dias os mortos têm permissão divina para visitar parentes e amigos. No dia 1º de novembro vêm as almas das crianças, e no dia 2, as dos adultos. Para receber seus entes falecidos, as pessoas enfeitam suas casas com flores, velas e incensos, preparam suas comidas e bebidas preferidas, vestem roupas com esqueletos pintados ou se fantasiam de morte – uma maneira de deixar os mortos mais confortáveis no mundo dos vivos. São elementos típicos do Dia dos Mortos mexicano: Esqueletos: como fantasia ou bonecos em tamanho natural, eles estão por todo lado, nas casas e nas ruas, recepcionando os mortos que nesses dias perambulam pela cidade visitando seus parentes e amigos. Alguns esqueletos são vestidos ou levam objetos que os identificam: bengala, chapéu, bolsa, bola, bicicleta etc.
La Catrina: trata-se do esqueleto de uma dama da alta sociedade do início do século XX, trajada elegantemente e usando um belo chapéu. Seu nome vem do desenho La Calavera de la Catrina (“A caveira de Catrina”), do artista mexicano José Guadalupe Posada (1852-1913), que faz parte de uma série de caveiras humorísticas destinadas a lembrar que as diferenças sociais não significam nada diante da morte. O desenho popularizou-se e La Catrina foi incorporada à Festa de los Muertos como uma espécie de Dama da Morte, uma Mictecacihuatl contemporânea.
La Llorona (“A Chorona”): figura fantasmagórica do imaginário popular mexicano, o espírito de uma mulher que perambula pela noite chorando a morte de seus filhos. Sua origem remete à mitologia pré-hispânica da deusa Cihuacóatl que emergiu do lago Texcoco para chorar a morte de seus filhos (os astecas) prevendo seu fim próximo. Outra versão, diz se tratar do espírito de Malinche, a indígena que acompanhou Hernán Cortés e teve papel importante na conquista do México que, por ter traído seu povo, virou alma penada. Há diversas outras versões mas, seja qual for, a figura de La Llorona acabou se fundindo à de La Catrina. Altares e oferendas: na impossibilidade de se visitar o túmulo (pela distância ou porque ele já não existe), as famílias montam altares em suas próprias casas nos quais colocam fotos do(s) morto(s) e representações dos quatro elementos: água, frutos (terra), vela (fogo), incenso e papéis recortados (ar). Completam o altar com os objetos favoritos do falecido ou brinquedos se for uma criança, comidas, bebidas, sal, flores, cobertores ou poncho (para aquecer o morto) etc. Uma cruz, na parte superior do altar junto à imagem do defunto, feita de sal, cinza ou terra lembra a máxima cristã: “Lembra-te que és pó e ao pó voltarás”.
Portal dos mortos: um arco de flores que simboliza a entrada por onde os espíritos poderão passar para visitar os vivos. Pão de mortos: um pão doce polvilhado de açúcar. Apesar de ser um pão simples, não é consumido durante o ano pois é reservado exclusivamente para a festa do Dia dos Mortos.
Caveiras de açúcar: doces em forma de caveira com o nome do morto e que são dados às crianças. Flores: girassol, rosas e, especialmente, crisântemos amarelos são usados em profusão para decorar túmulos e altares. Elas simbolizam a beleza e a transitoriedade da vida. Patrimônio Cultural Imaterial Em 2003, o Dia de los Muertos foi declarado Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco que a considerou “uma das representações mais relevantes do patrimônio vivo do México e do mundo e como uma das expressões culturais mais antigas e de maior força entre os grupos indígenas do país”. A festividade mexicana é também comemorada nos Estados Unidos principalmente nos estados onde existe uma comunidade de imigrantes mexicanos, caso do Texas, Arizona e Califórnia. Contudo, já se observa com frequência cada vez maior, a penetração de elementos típicos do Halloween nos festejos do Dia de los Muertos. Daí existir a preocupação dos próprios mexicanos em preservar o Dia de los Muertos como parte do patrimônio cultural imaterial sobre outras celebrações similares.
Fonte - GENNEP, Arnold Van. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.
JOHANSSON, Patrick K. La muerte en la cosmovisión náhuatl prehispánica. Consideraciones heurísticas y epistemológicas. Estudios de cultura náhuatl, México, v. 43, 2012.
UNESCO.Indigenous festivity dedicated to the dead.
MOCTEZUMA, Eduardo Mato. El rostro de la muerte en el Mexico prehispánico. GV Editores, 1987.
GOMEZ, Marco Antonio & DELGADO, José Arturo. Ritos y mitos de la muerte em México y otras culturas. Grupo Editorial Tomo, 2000.
por Joelza Ester Domingues
por Joelza Ester Domingues