segunda-feira, 16 de julho de 2018

AS DEUSAS TECELÃS parte 1














A Grande Mãe rege o tempo cíclico, a alternância dia-noite, a mudança das estações, os ciclos lunares, a menstruação e a gravidez das mulheres. O mistério primordial do ato de tecer e fiar também lhe pertence - desde os primórdios do universo feminino - por ser A Senhora do Tempo, e consequentemente, do Destino. Como Deusa Fiandeira ou Deusa tríplice lunar, Ela fia e tece não só a vida humana, mas também o destino do mundo, transformando o caos informe em realidade estruturada.  Como Deusa Tecelã, Ela cria os fios que formam a estrutura do universo, fios estes que, ao se organizarem e reorganizarem continuamente formam todos os elementos que compõem o mundo múltiplo, variado e diverso.
Fiar é uma das atividades humanas mais antigas, cujas origens se perdem na pré-história. Como uma atividade caseira desempenhada pelas mulheres, desde a antiguidade até a revolução industrial, o processo de fiar e tecer tornou-se um símbolo poderoso da criação de uma nova ordem a partir do caos, definindo assim o destino humano.  A magia que transmuta lã, seda, linho, algodão ou outro material vegetal em fios e com ele tece panos para os mais variados usos, permitiu aos nossos ancestrais sobreviverem nas regiões frias e quentes do planeta. E esta magia era realizada sempre pelas mãos das mulheres, sob a inspiração da Deusa. Nas comunidades Kajaba da Colômbia, a condição para ser mulher é saber fiar e tecer, um ofício cujos segredos são transmitidos às jovens moças, quando na sua puberdade ficavam reclusas na “tenda vermelha”. No mito da criação desta nação descreve-se como a Mãe Universal fincou seu imenso fuso verticalmente na terra recém-criada e dele se desprendeu um fio de algodão, com qual traçou um círculo, delimitando assim a terra de seus filhos.
Desde os primórdios da civilização, podemos encontrar nas cestas e esteiras, trançados com fibras de folhas e cipós, as primeiras formas de tecelagem, talvez inspirados nas teias de aranhas e nos ninhos dos pássaros. As atividades femininas de tecelagem, fiação e bordado sempre eram acompanhadas pela expressão espontânea de desejos, fantasias e lembranças, de partilha de tradições e memórias, de brincadeiras, risos e lamentos. Em muitas sociedades, fiar e tecer formava um espaço de encontro de experiências, solidariedade e cumplicidade, de cantos e narrativas. Nos momentos importantes da vida feminina, como o casamento e a gravidez, o enxoval bordado e tricotado pela família e amigas, se constituiu num verdadeiro rito de passagem, evocando a imagem das Deusas Tecelãs, Senhoras do Destino, presentes em diferentes culturas.
Tecer significa ativar e misturar nossas experiências de vida para produzir um padrão individual, único e inimitável, que diferencia cada indivíduo entre todos os seres no cosmos. Quando permitimos que uma nova experiência se integre no nosso viver, quando não tememos as transformações decorrentes, estamos tornando nosso padrão pessoal mais complexo e, com isto, enriquecendo o padrão coletivo. Tornamo-nos cocriadoras da Grande Teia, participando na criação do nosso destino individual, grupal e coletivo.
Em muitos mitos antigos a criação do universo resultava de atividades manuais, como modelar a argila, talhar a madeira, arar ou tecer. A tecelagem aparece com um símbolo recorrente da criação, tanto do universo, como da vida humana.  O próprio Cosmos, segundo o historiador e escritor Mircea Eliade, é concebido como uma tessitura, uma enorme teia, a criação do mundo através dessa atividade sendo atribuída a uma Deusa, que se tornava assim a Senhora do Destino.
 Na Grécia, as Tecelãs do Destino eram as Moiras, filhas da deusa primordial Noite (Nix, nascida do Caos) ou em outra versão, consideradas filhas de Zeus e Têmis. Originariamente as Moiras eram consideradas forças primordiais, impessoais e inflexíveis, representando a lei, que nem mesmo os deuses podiam transgredir sem colocar em perigo a ordem universal. Com o passar do tempo, foram descritas como uma tríade, personificando o destino individual: Cloto (a que fia) segurava o fuso e puxava o fio da vida; Láquesis (a  que tira a sorte) enrolava o fio e sorteava o nome de quem ia morrer; Átropos (a inflexível) cortava o fio da vida. Em Roma, as Parcas eram deusas fiandeiras equivalentes das Moiras, que presidiam ao nascimento, casamento e morte e seus nomes eram Nona, Décima e Morta. O número de três, nove ou mais raramente, doze, é associado a etapas temporais, como começo-meio-fim, passado-presente-futuro, nascimento-vida-morte.
A mais conhecida tecelã é a deusa grega Athena, patrona de todas as artes e ofícios, regendo um amplo espectro da existência humana. Às mulheres ela confere a compreensão do valor e da importância dos poderes criativos para tecer o sagrado em todos os atos cotidianos. Da sua origem anterior - pré-helênica - ela guarda a sabedoria aquática e intuitiva de sua mãe Métis, uma Oceânide. Assim, ela é sintonizada com os sutis processos de transformação que ocorrem continuamente na vida das pessoas, sendo muito receptiva aos sentimentos pessoais, poéticos e sensíveis, próprios da natureza feminina.  Mas ao mesmo tempo, representa o saber abstrato e lógico, manifestado na produção artesanal, na arte da guerra e no poder institucionalizado, introduzidos pelo princípio masculino e o raciocínio cartesiano.
 Na mitologia nórdica, a deusa tríplice do destino é representada pela tríade das Nornes: Urdh, Verdandhi e Skuld, as tecelãs que fiam perto do poço de Urdh, entre as raízes da Yggdrasil, a Árvore do Mundo. A mitologia nórdica é rica em histórias e arquétipos de deusas (Berchta, Holda, Frigga, as Disir e as Akkas) que envolvem o ato de fiar e o tecer, mas o destino era decretado pelas Nornes, que teciam a teia do destino com uma miríade de fios e linhas. Urdh, a mais velha das três e também a mais antiga, estava sentada ao lado de uma fonte, a Fonte de Urdh, onde o próprio Odin ia buscar conselho e conhecimento. Na literatura inglesa, as Nornes são conhecidas como Weird Sisters (Irmãs Destino) e entre as deusas celtas as fiandeiras são Arianrhod, Badb, Bean Sidhe, Morrigan e Scatach. As deusas eslavas do destino são as Rodjenice e as fiandeiras astecas são Ix Chel,  Chalchiuhtlique e Mama Occlo.
No Egito, a deusa Net ou Neith, era uma Deusa Primordial e Onipotente, “Aquela que não nasceu, mas gerou a si mesma”, cujo culto era envolvido em mistério; ela era homenageada com procissões à luz de tochas como “deusa regente da magia e da tecelagem”. Como Fiandeira Cósmica ela fiava os fios que se entrelaçavam em infinitas possibilidades, numa teia multidimensional que constituía a estrutura básica de tudo que existe no universo. Por sermos emanações da Deusa Tecelã, todos nós somos constituídos da mesma substância e compartilhamos a essência divina dos fios de Neith.
Como todos os arquétipos da Grande Mãe, as Tecelãs do Destino se apresentavam tanto sob o seu aspecto luminoso e benevolente, como sob o seu aspecto sombrio, terrível. Independentemente da sua origem – greco-romana, egípcia, nórdica, hindu ou nativa, as Senhoras do Destino são sempre Tecelãs, representadas por uma tríade arcaica que existe além do tempo e do espaço fiando, tecendo e cortando o fio da vida. Na mitologia germânica, as Valquírias, em número de doze, encarnam o aspecto terrível da Fiandeira do Destino. Elas cantam enquanto tecem num tear espectral a morte dos guerreiros no campo de batalhas, tendo o sangue como matéria–prima. Na tradição hindu, a deusa tecelã recebe o nome de Maya; do centro de sua teia, ela não apenas tece a ordem cósmica, mas a reproduz em nosso mundo sensorial de forma tão perfeita, que não distinguimos entre a realidade em si e nossa versão dela. Assim como Maya se posiciona no centro da teia cósmica, cada ser humano percebe a si mesmo como o centro da própria existência, fiando e tecendo sua própria realidade, a partir de um centro do Eu. Mas, ao tecermos nossa própria tessitura, nossa individualidade, não devemos esquecer de que estamos conectados com todos os demais seres da criação, por meio dos fios de que é feita a Grande Teia Cósmica.
A Tecelã é uma imagem arquetípica frequentemente representada na arte e na literatura, especialmente nos contos de fadas e mitos, através de figuras femininas – deusas, fadas, mulheres. Nos contos de fadas encontramos frequentemente o tema e o simbolismo da fiação e da tecelagem. As fadas têm, entre os seus atributos, o dom da tecelagem de tecidos mágicos e invisíveis associados ao destino. Uma lenda europeia fala sobre as fadas protetoras dos bosques que teciam tecidos maravilhosos. Se fossem surpreendidas por algum passante à noite, quando iam se banhar, o tecido transformava-se em mortalha.  Mas se um homem lhes agradasse, recebia um fio mágico para que não se perdesse na floresta. Percebemos nessa lenda resquícios do mito de Ariadne em sua função de guia, que permite a saída do labirinto / bosque, símbolo do inconsciente, tornando-se bem evidente o duplo caráter benévolo / maligno dessas entidades, herdeiras diretas das fiandeiras míticas.
Em várias culturas, a Criadora Cósmica e a Deusa regente da fiação e tecelagem são representadas como aranhas.  A aranha é um símbolo lunar, que evoca pela fragilidade de sua teia, uma realidade ilusória, enganadora. Ela partilha com a mulher os atributos de fertilidade e o poder mágico, podendo vaticinar sorte ou azar, ataque ou proteção, amizade ou ataque. Na sua incessante atividade de tecer e matar, a aranha simboliza a alternância de forças que garante a estabilidade do cosmos. Por isso Jung considera a aranha como símbolo do Self que inclui o consciente e o inconsciente.
Entre os índios norte-americanos, “A Mulher Aranha, Avitelin Tsita ou A Mulher Pensamento” é a responsável pela criação e manutenção do universo, fiando e tecendo continuamente a vida. Nessa cultura, as aranhas nunca são mortas, pois seria uma ofensa às Avós ou antepassadas. A Mulher-Aranha possui todo o conhecimento e está em toda a parte. Pode aparecer como uma jovem, uma velha, ou mesmo uma aranha, pode ser vista ou tornar-se leve como o ar. Ela é considerada “A Mãe de Tudo”, que deu vida ao mundo, criando plantas, animais e, finalmente, os seres humanos. Ela possui poderes divinos e sabedoria ilimitada, sabe todas as linguagens e possui dons proféticos. Por sua associação com a terra, na qual ela vive, ela tem as características de uma Deusa da Terra. É velha como tempo, e jovem como a eternidade. “A Mulher Aranha” é a Grande Tecelã, Criadora da teia da vida. Ao misturar a terra com sua saliva, Ela criou fogo, chuva, raios, arco-íris e todos os seres da Terra. Com seus fios, Ela ligou as quatro direções, assim como também ligou a cabeça dos homens (chakra coronário) a si mesma, tecendo a teia do amor e sabedoria.  Ao mesmo tempo em que a Mulher Aranha é criadora, Ela também tem a sua face ceifadora, tendo o poder de destruir para a renovação. No mito asteca as aranhas representavam as almas das mulheres guerreiras remanescentes do matriarcado pré-asteca, semelhante às Amazonas. No fim do mundo, elas iam descer do céu nos seus fios prateados e matar todos os homens, como se fossem Valquírias de oito pernas.
 A ligação entre a aranha e a divindade tecelã está presente também na mitologia grega, na história de Aracne, a mortal que desafiou a deusa Athena, a patrona de diferentes artes manuais e criativas, entre elas fiação, tecelagem, bordado e ourivesaria. Aracne era uma jovem de extraordinária habilidade na arte de bordar; seus trabalhos eram tão perfeitos e admirados, que chamavam a atenção de todos, fossem eles ninfas ou camponeses. Devido a tanta admiração de todos, Aracne começou a equiparar-se com a deusa Athena na qualidade de seus trabalhos. Quando a notícia chegou ao Olimpo, Athena ficou furiosa com a petulância da mortal; sentiu-se desafiada e resolveu promover uma competição com Aracne, para ver quem merecia, de fato, ser considerada a melhor na arte de bordar. O povo escolheu o trabalho de Athena e Aracne fugiu para o mato e quis se enforcar. Athena a achou e disse que ela e os descendentes dela, a partir de então, iram tecer teias ao invés de tecidos e a transformou em uma aranha. Outra versão conta que a Athena rasgou um bordado de Aracne, que por desespero se enforcou. Athena se apiedou da moça e a transformou em aranha, dizendo-lhe para tecer belos bordados. O que suscitou a ira da deusa Athena, além da arrogância daquela mortal, era o tema de sua tapeçaria, a narrativa das aventuras amorosas de Zeus. Athena castigou a sua rival fazendo com que ela se arrependesse e de tão culpada, se enforcasse; mas por piedade ou para que ela pagasse eternamente pela sua arrogância, Athena a transformou numa aranha.
O tear, como símbolo, mantém a ordem cósmica, e sua produção é o fio da vida. Na tradição islâmica, o tear é símbolo da estrutura e do movimento do universo. Nas tradições populares, também se observam ritos que comparam o tecer ao criar vida. Na África do Norte, nas regiões montanhosas, em qualquer choupana humilde há um tear simples: dois rolos de madeira sustentados por dois montantes. O rolo de cima é o rolo do céu e o de baixo, o rolo da terra. Quando o trabalho de tecelagem está pronto, os fios que o prendem são cortados, enquanto se pronuncia a mesma bênção feita pelas parteiras, ao cortar o cordão umbilical dos recém-nascidos. Matéria prima da tecelagem, o fio, e por extensão os nós e laços, estão sempre presentes nos mitos e superstições e são utilizados na medicina popular, nos ritos, nas feitiçarias e como amuletos. Sendo ambivalentes, como todos os símbolos, os nós podem tanto provocar como evitar e curar as doenças, impedir ou facilitar o parto, trazer ou afastar a morte. Em algumas culturas, o homem não deve usar nenhum nó nos momentos críticos como nascimento, casamento e morte.
No mito e na arte, a tecelagem pode aparecer como uma forma de narrativa. Em culturas de diversos lugares e épocas, os painéis e tapeçarias são não somente ornamentos, mas também documentos, traduzindo, em imagens tecidas, fatos históricos, mitológicos ou cenas da vida cotidiana. Um mito grego exemplifica a tecelagem como narrativa. É a história de Filomena, raptada e violentada por seu cunhado e que também corta a sua língua para impedir que o delate, trancando-a numa torre. Mesmo prisioneira, a moça consegue tecer sua história e faz com que a tapeçaria chegue às mãos de sua irmã que, compreendendo a mensagem, consegue encontrá-la e buscar justiça. O trabalho contínuo de Penélope, tecendo e desfiando, dia e noite, à espera do seu amado, sem jamais completar sua tarefa, tem sido associado, às vezes, à rotina das tarefas domésticas femininas, que não leva a nenhuma realização pessoal, nenhum crescimento psíquico. No entanto, o mito mostra que esse trabalho repetitivo foi uma estratégia escolhida pela heroína, esperando o retorno do marido, numa tentativa de “parar o tempo”. O padrão cíclico estabelecido, assim como os ritmos da natureza, revela mais do que uma tática racional, uma profunda conexão com a essência feminina.  A sua tão decantada fidelidade, é, acima da lealdade ao marido, uma fidelidade a si mesma, à manutenção da sua autonomia, pois ao tecer e desfiar a tecelagem Penélope mantinha, sob a forma de fio no tear, o controle de sua vida.
  
Mirella Faur