quinta-feira, 28 de junho de 2018

Vulnerabilidade é Poder


O que em mim é sensível, o que em mim se permite abrir, perceber, ultrapassar as fronteiras da segurança ilusória e enfrentar o medo do desconhecido, é a mesma parte de mim capaz de conectar-se com o todo, capaz de expandir-se a ponto de sentir “ser Deus”.
Ali onde me sinto pequena e vulnerável, onde a minha criança chora porque se sente assustada demais para pedir ajuda, ali onde tudo parece grande demais e os medos crescem de debaixo da cama como sombras na parede do quarto, ali, exatamente ali, reside também o meu poder.
É nesse ponto, no enfrentar o monstro que se ergue, no tremer diante dele e ali poder chamar o guia interior para manter-me em pé: é nesse exato segundo que podemos colher o milagre se estamos atentos. Somente permitindo-me estar presente no meu instante de maior terror poderei ver que o monstro que me assusta é um brinquedo, cuja sombra foi amplificada pelo meu espelho. Somente ali, poderei olhar pela janela e perceber que é o escuro da noite a permitir que possamos ver as estrelas e redimensionar o universo nos parâmetros da sua grandeza. Saio do meu pequeno para me lembrar que de cima, sou parte de um grande quadro, de uma grande dança, e que meu grito sentido não perturbará o navegar dos astros. Ao contrário, se o interrompo antes que ele estilhace o meu pequeno ecossistema, antes que ele possa comunicar às minhas células o seu sinal de alarme, em mensagem de pânico e caos, será o átimo de contemplação da grandeza, o movimento da harmonia, a comunicar-lhe algo. Será então o universo a dizer, “repara quanta paz existe no girar de um planeta”, “observa com qual aceitação uma estrela fugaz explode no céu e desaparece, com qual desapego doa suas cinzas à imensidão vazia sem se perguntar sequer sobre a morte, sem ter percebido sequer um dia haver um corpo, e sem então sofrer na sua trasmutação porque toda a sua consciência apenas habita o existir.”
No meu medo há uma porta, e quando ele vem agradeço então a possibilidade de vê-la, e farei ainda melhor se abraçar a ocasião para passar por ela. Na vulnerabilidade recolho meus cacos, todo o meu ser que se alongara, se perdera, até não se reconhecer mais em si, recolho todo esse material inutilizado para reuni-lo de novo na extensão de meu umbigo, no centro de meu corpo, ali onde com um movimento vigoroso de músculos reúno toda a minha força para chamar a consciência para a matéria de novo e perceber num movimento simples o potencial de contração presente na origem de toda vida, de todo ser. Eu habito o meu centro, e mais do que isso habito cada parte de mim, toda a extensão de meu corpo, para não deixar entrar nada que não venha de minha suprema consciência. Sou a guardiã do castelo, e nesse momento defino, anuncio com firmeza na voz, que nada entrará aqui sem as minhas boas vindas, sem o meu consentimento, nada entrará aqui que não seja para preencher de luz e cor as flores que já desabrocham no meu jardim. São bem-vindas crianças com luz a brotar da alma que corram e preencham de som e alegria as bancadas entre as folhas, são bem-vindos pássaros, que com seu canto me concedam a contemplação do puro espírito em minha alma, são bem-vindas borboletas, telas vivas da arte do criador, espelhos para o meu infinito potencial de criação.
Aqui, no castelo de meu ser, de minha existência, eu habito em amor ao universo que existe em mim, que sou eu, e escolho que a lei que impera aqui é a lei do amor. Nenhuma folha se moverá e nenhuma palavra ecoará que não seja movida pelo sopro de amor do que em mim é eco do criador. Que assim seja, pois assim me  aproximo de novo da minha soberana identidade, vasta como tudo que existe.
"Sendo terra, sendo água, sendo mulher, aprendi que sou também abundância, e deixo correr os rios de minhas entranhas em mim."
Nessa grandeza, agradeço o medo que me abriu os portões de meu majestoso reino, ali quando eu pensava que só existia o frio de uma parede de pedras. A cada vez que existir em mim um prisioneiro, da dúvida, do medo, do rancor, da amargura, da raiva, do desacerto, da desesperança, do desamor… a cada vez que existir em mim um prisioneiro eu o farei trasnformar-se de novo em soberano, lembrando-lhe que poderá criar um castelo tão real quanto sua presente prisão. De seu ser vulnerável nasce o impulso de vôo, de oração. E é contactar o criador em sua bondade infinita para ter um vislumbre de como remover com um sopro as pedras de sua prisão.
Vulnerabilidade é poder. É a mesma abertura, a mesma natureza, a apresentar-se a nós como um presente de amor. É ela que bate à minha porta quando meu útero se derrama em sangue, dizendo-me do cosmo desconhecido que habita dentro de mim. “Olha-te dentro.” ela me diz. “Não vês que na matéria de teu sangue –  o mesmo que associastes à dor, ao sacrifício, ao sofrimento, à perda e à morte – está o potencial maior da própria vida? Não vês que bem ali, onde os outros te podem ferir e te feriram, está também a tua medicina, a tua única cura? Que do teu ponto de escuridão onde todas as dores se reúnem, onde todas as mulheres que choraram ainda choram, onde todos os gritos de desespero ainda ecoam, a fênix banha as asas em teu sagrado sangue e alça vôo rumo à libertação.” É assim que o nosso corpo nos ensina, é assim que a Grande Mãe falou a todas as mulheres em todos os tempos e fala ainda, porque nós somos filhas e aceitamos em nosso útero a semente da sabedoria da vida, porque um dia dissemos “sim”  à possibilidade desse milagre, dissemos “sim, eu aceito ser casa, porto seguro, para que o espírito que me deu vida renasça em mim e continuemos a compor a magnífica dança da criação.
“Não vês que na matéria de teu sangue – o mesmo que associastes à dor, ao sacrifício, ao sofrimento, à perda e à morte – está o potencial maior da própria vida?"
Com meu sangue dancei, com meu sangue chorei, com meu sangue pintei as paredes de meu altar, aceitando a harmonia em mim, aceitando a morte até na dor, rezando em voz alta à Mãe do Universo para que nos ensine a fazê-lo sem sofrimento, em ressonância com sua natureza de paz, complascência, amor e paciência infinita. Que possamos aprender a reconhecer em nós a vossa natureza de pura abundância, Mãe, e que possamos nos lembrar, a cada vez que nos sentirmos ameaçadas e vulneráveis, que já temos tudo, e que por sermos filhas, por habitarmos desde sempre em ti, nada, nunca, nos faltará. E é justamente a abertura que nos faz sentir medo que nos permite ser tudo.
Sendo terra, sendo água, sendo mulher, aprendi que sou também abundância, e deixo correr os rios de minhas entranhas em mim. Sinto-os percorrendo as minhas pernas, vejo-os em cor de lava quando se depositam de novo na terra fria e ali se consolidam e criam rochas que serão sustentação a nossas casas, em dois ou dois milhões de anos, como nos recorda a natureza dos vulcões, não importa realmente quando, se tudo existe já aqui. Rios de água cristalina, grandes erupções, água que navega para retornar ao oceano de onde nasce toda a criação. Repetimos em nós os mesmos milagres há mihares e milhares de vidas e ainda não nos deslumbramos o bastante… Como pode o ser humano ser tão ínfimo e infinito ao mesmo tempo, sem entrar em contradição?
Gratidão pelo que em mim, como mulher, ainda chora, e pelo que em mim, como mulher, escolhe a cura. Gratidão ecoa de mim na cor de minha caverna, de meu ventre rubro-sangue. Gratidão por poder sentir gratidão por receber o meu sangue. Gratidão de poder vivê-lo pelo que é. Eu ofereço uma de minhas lágrimas ao ventre de cada mulher que ainda não experimentou sentir essa gratidão. Nessa manhã, em que a verdadeira tinta de minha escritura é o meu sangue, esse é o presente que ofereço ao mundo. Com as mãos em concha recolho de meu útero o filhote que se prepara a seu primeiro vôo e, mesmo reconhecendo em suas pequenas asas o medo, ofereço-o à imensidão.
Por nós, mulheres, para que abracemos de novo o nosso poder. E pela nossa cura.
Larissa Lamas Pucci