segunda-feira, 5 de agosto de 2013

As Três Faces da Mulher Celta

 
"Todas as sociedades, ao longo dos tempos, tentaram definir as relações do homem e da mulher, como casal e dentro das estruturas sociais existentes. Para isso, atribuíram a cada um determinado lugar, que varia sensivelmente de acordo com os costumes e as tradições de cada povo.

Entre os celtas - os antigos gauleses, os irlandeses, os bretões da Ilha da Bretanha que vieram a ser os galeses, e os bretões armoricanos - as estruturas sociais eram as de todos os povos indo-europeus; isto quer dizer que a tendência era o patriarcalismo com o homem em primeiro plano.

Mas ao analisarem-se textos jurídicos, testemunhos históricos, literários e mitológicos, é surpreendente a constatação de quanto era vantajosa a condição feminina entre os celtas em relação a algumas outras sociedades, principalmente as mediterrâneas. Por outro lado, é certo que existem analogias profundas entre os usos celtas e os usos da Índia antiga quanto às formas de casamento.

É sabido que todos os mediterrâneos, particularmente os gregos e romanos, mantinham a mulher em estado de menoridade permanente. Os celtas, ao contrário, lhe atribuíam direitos que a mulher das épocas puritanas dos séculos XIX e XX, na Europa ocidental, estavam longe de possuir.

As razões dessa particularidade são muito diversas, mas podemos citar uma essencial: os celtas que invadiram a Europa ocidental por volta do século V a.C. não eram numerosos; constituíam uma elite guerreira e intelectual, e encontraram, nos territórios que vieram a ocupar, populações autóctones de densidade bem maior, às quais impuseram sua cultura, sua língua, sua religião e suas técnicas, e das quais assimilaram alguns costumes, especialmente os referentes às relações interindividuais.

Assim, as condições muito especiais do estatuto da mulher se observam no quadro da civilização celta devem ser buscadas na herança dos povos outrora instalados na Europa Ocidental.

O que espanta é a relativa independência da mulher em relação ao homem. A mulher pode ter bens próprios, como objetos de uso, jóias e cabeças de gado. Como o sistema celta admitia a propriedade mobiliária individual juntamente com uma propriedade rural coletiva, a mulher podia dispor de tal propriedade a seu bel-prazer, vendendo-a se assim quisesse, adquirindo outras por meio de compra, de prestação de serviços ou por doação. Ao casar-se, a mulher conservava seus bens pessoais e os levava consigo em caso de dissolução do casamento.

O casamento celta, aliás, era uma instituição flexível, resultante de um contrato cuja duração não precisava necessariamente ser definitiva. A mulher escolhia livremente seu marido, pelo menos teoricamente, pois às vezes os pais arranjavam casamentos por oportunismo econômico ou político. Mas mesmo nestes casos, a moça era consultada.

Aliás, no quadro do casamento, tudo dependia da situação pessoal dos esposos. Quando a mulher possuía menos bens que o marido, era este quem dirigia a casa, sem recorrer à mulher. Mas se as fortunas do homem e da mulher fossem iguais, o marido não poderia dirigir a casa sem o consentimento da esposa. E, fato excepcional na maioria das legislações, no caso de a mulher possuir mais bens que o marido, era ela quem dirigia a casa, sem pedir sequer a opinião dele.

A História e a epopéia antiga nos deixaram uma lembrança muito viva de situações assim: isso mostra eloqüentemente que a mulher conseguira, numa sociedade patriarcal, manter uma certa predominância e uma autoridade moral incontestável.

Também é importante constatar que, casando-se, a mulher não entrava nunca na família do marido. Ela pertencia sempre à sua família de origem, e o preço pago pelo marido pela compra de sua mulher era uma espécie de compensação dada à família dela. Mas em caso de divórcio a mulher retomava seu lugar natural em sua família de origem.

Em determinadas situações, especialmente quando o marido era estrangeiro, a família constituída pelo casamento pertencia a uma categoria especial, ligada à família da mulher, e os filhos herdavam exclusivamente a família materna.

O mesmo acontecia nas famílias reais em que a transmissão da soberania se dava às vezes por intermédio da mãe, ou do tio materno; existem, tanto na literatura irlandesa quanto na literatura européia de inspiração celta, lembranças flagrantes dessa prática de transferir a herança aos filhos do irmão da mãe. O exemplo mais célebre é o de Tristão, herói de uma lenda medieval de origem celta, herdeiro de seu tio materno, o rei Mark.

Fora do casamento, existia - e durou muito tempo na Irlanda, mesmo nos tempos cristãos - uma espécie de concubinato regulamentado por costumes severos. O homem, casado ou não, podia tomar uma concubina. Se fosse casado, só o poderia fazer com o consentimento de sua esposa legítima mas, de qualquer forma, a concubina só vinha instalar-se no domicílio do homem depois de ter acertado com ele um verdadeiro contrato. Ela recebia uma compensação pessoal, assim como sua família de origem, e comprometia-se por um período limitado a um ano e nem mais um dia.

Ao termo desse prazo, a concubina podia retomar sua liberdade, a menos que combinasse um outro contrato de igual duração. Esse estranho costume, que se quis chamar de "casamento temporário" ou "casamento anual", tinha o mérito de salvaguardar a independência e a liberdade da mulher; ela não era um objeto, comprado hoje e abandonado amanhã, ela era realmente uma pessoa, com a qual se celebrava um contrato.

E se o contrato não fosse respeitado, a mulher concubina sempre tinha a possibilidade de apelar à decisão de um juiz que ela mesma escolhia entre os que eram considerados mais sábios, geralmente druidas, que, além de suas funções sacerdotais, eram verdadeiros jurisconsultos.

O contrato de casamento era no fundo um tanto provisório e podia ser rompido a qualquer momento. Assim sendo, o divórcio era extremamente fácil. Se o homem decidisse abandonar a mulher, devia basear-se em motivos graves; se não os tivesse, deveria pagar idenizações muito altas, exatamente como em caso de quebra abusiva do contrato.

Mas a mulher, por seu lado, tinha o direito de se separar do marido quando ela a submetessa a maus tratos, ou mantivesse no domicílio uma concubina que não agradasse a ela.

Cita-se com freqüência o exemplo de um druida que queria levar para casa uma concubina não aceita por sua esposa legítima. Ele quis insistir, mas sua mulher fez saber que se divorciaria, e como a mulher possuía a maior parte da fortuna do casal, o druida refletiu melhor, resignou-se e submeteu-se à vontade da esposa, renunciando à concubina.

Na verdade, embora fosse mais freqüente que os homens pedissem a dissolução do casamento, as mulheres tinham o mesmo direito, e o divórcio podia ser feito quase automaticamente, por uma espécie de consentimento mútuo. E, havendo a separação do casal, a mulher não só retomava seus bens pessoais, mas retinha também sua parte em tudo o que o casal tivesse adquirido durante o tempo do casamento.

Esta solução impedia que a mulher fosse lesada quer no plano econômico quer no plano moral, pois o divórcio não decorria de nenhuma culpa; um contrato tornara-se caduco, e o divórcio não era mais do que o reconhecimento desse fato.

É certo que o problema dos filhos apresentava dificuldade. Em princípio, os filhos pertenciam à família do pai, e estavam, assim, protegidos de qualquer injustiça, pois a solidariedade familiar intervinha em favor deles, que não eram nunca abandonados. Havia ainda uma instituição especial para crianças que estivessem neste caso: adoção, que consistia em mandar os filhos para receberem educação manual, doméstica, intelectual ou guerreira com outra família, que por sua vez criava laços entre a criança e seus pais adotivos, alargando consideravelmente o quadro da vida familiar.

Os filhos podiam herdar tanto do pai como da mãe. As meninas não ficavam afastadas da sucessão, ainda que fossem ligeiramente desfavorecidas em relação aos meninos. Mas, no todo, tanto quanto se pode observar nas épocas históricas do século V a.C. ao século XII da nossa era - a sociedade celta na Irlanda, na Ilha da Bretanha armoricana parece ter feito todo o possível para salvaguardar a dignidade, os direitos e a autoridade moral da mulher."

Texto do pesquisador Jean Markale, retirado da revista O Correio da Unesco (nº2, ano 1978).